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Bem se poderia definir Sidney Rocha por sua lixeira; ou por sua frequência de toque da tecla delete: tão burilados estão os textos, nesses contos, que o leitor tem, juntos, a satisfação e a surpresa de uma narrativa curta, densa – como um tiro surdo.  Um autor aqui construiu seu estilo resistindo às facilidades; é como se víssemos sua lixeira ou digitação do delete como as mil lascas que o mármore perdeu e se espalharam pelo solo, quando, finda, a obra brilha. E agora necessária, simples, evidente: está aí.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um escritor se define por suas recusas, pelo que vence em suas resistências à acomodação a uma narrativa consensual. Um risco, certo. Sidney escreve também sem a redinha de proteção. Mas, não haveria raridade sem essa ousadia. Hoje já não cabe mais etiquetar a produção literária contemporânea; basta reconhecer, na profusão, a raridade de um texto forte. A novidade.

Não parece ser a morte a matéria única dos contos. Há também o sonho que comparece como concretude de nossos gestos. E a matéria dos contos frequenta temporalidades diversas. E assim parece apontar para esses dois elementos universalizantes da cultura: a morte e o sonho.

Guerra de ninguém é, num primeiro relance, uma seleção de momentos de morte. No entanto, ela é apenas aquilo que põe em relevo as vidas a que a morte, num repente, faz insignificantes, anônimas. Guerra de ninguém. Os diversos modos de morte apontam para um sujeito anônimo, aqui, ali e além, nos quatro quadrantes do mundo. A morte apenas culmina as tantas mortes que as perdas, miúdas, cotidianas, prefiguram. No entanto, a narrativa não demora no anedótico. Há uma grande economia narrativa que marca um avanço no registro literário contemporâneo. Sidney soube resistir ao comum do modo literário mais corrente: não há aqui imprecisão, indecisão, vagueza; os fatos pesam; e quase com a rudeza kafkiana que desnorteia o leitor. 

Aqui, nenhum efeito gratuito – prova da prosa proposital de Sidney Rocha; uma operação de desbaste deixou a narrativa densa e depurada; como as pedras preciosas – que não porejam. Basta ver o andamento seguro de “A alva”, para que o leitor se dê conta da maturidade narrativa de Sidney Rocha. A riqueza semântica ali aberta diz do cuidado do escritor: a alva é veste talar sacra, é veste do condenado, e é também a alba, momento inaugural da liberdade em Pernambuco. O narrador alarga a história – essa, a sua função – e, no passe final, projeta nos braços abertos do frade valoroso a dimensão do homem: Era a medida geométrica certa que encontrara para abraçar as balas e o mundo. O conto reverte a linha da seleção? Bala e sonho: este perdura; chega além; quando oficial, sargentos e soldados, diante da história, são ninguéns.

Não choca que a morte chegue como o quinhão que cabe a cada qual; dói mais é perceber que a vida se arrasta no deserto diário das violências que nos enceguecem por sua evidência. Quer seja nos descaminhos do sertão, por descaso do poder público; quer seja nas periferias das metrópoles, por desgovernanças.

Desde algum tempo Sidney vinha anunciando novidade; demarcando com o signo distintivo de seu estilo o diferencial dos de sua geração. É depois do efeito de sua frase, cadenciada pela poesia, que o leitor indaga de onde vem a novidade. Em Matriuska, a seleção de contos de 2009, publicada já pela Iluminuras, Sidney Rocha fazia prever seu labor literário. E o excelente O destino das metáforas – que o prêmio Jabuti sagrou em 2011.

A força do estilo é a do sangue fresco. Em “Os Nehemy” as coisas estão ainda suspensas, como o ódio latente entre filho e pai: Ele e o pai estavam constantemente se ferindo com olhares quando a dureza dos seus dois mundos estragavam os almoços de domingo. Em alguns momentos a sintaxe se ressente do abalo da circunstância: de guerra; e então a gramática recorre à síncope, à suspensão do sentido; as conexões, perdidas como, em tempo de guerra, as pontes explodidas. Depois, foi o silêncio. O promotor mostrou onde as quatro balas. Ou quando em “A mãe de seu menino” a dor desborda a linguagem: Assim, nunca me perdoe, filho, não torne isto mais injusto e insuportável do que já. A narrativa credita ao poético a possibilidade de tocar com cautela no non sense da morte – advinda, não do acabamento de vida que faz a velhice, mas da estupidez humana. Assim, a amizade entre Von Schetow e Bredow se vê inviabilizada pela estupidez da circunstância: ...tomaram-lhe as pistolas, apontaram-nas para o sonho dentro da cabeça de Bredow e atiraram. [“Pele”]. Dentro da crueza do sistema sonhos são traições. Em “Beautiful negro lady” o desejo toma a concretude de um sonho insustentável. Certos sonhos são mortais. Todo sonho é, diz o narrador, em dado momento. A violência interna de quando somos privados; a violência exterior de quando já não dirigimos seu curso. Em “René”, a mão sonha violência redentora – com a saída pelo poético. Como se só a realidade – ou a realidade só – fosse irredenta. A bala é só uma modulação no ritmo ensurdecedor de nossa modernidade. Esta, a contundência dos contos breves de Sidney Rocha.

A brevidade dá aos contos uma mobilidade narrativa surpreendente. O ritmo das frases parece he­sitar e persistir, como movimento de mar. Uma bala, uma onda; e o texto: como uma música a convocar a vida; a vida, apesar de; a vida, na contramão. 

Em meio a tantas publicações – e em tantos suportes, a que vem a prosa de Sidney Rocha? Se acompanharmos Ossip Madelstam, agora é o autor que atira no escuro; para atingir um provável leitor com o oposto de um sedativo: o ritmo do texto como uma música a convocar a vida. Morrer, como saber? Mas, viver dói. Assim, Sidney Rocha, com Guerra de ninguém marca um bom momento da literatura brasileira.

por LOURIVAL HOLANDA

MORRER,

COMO SABER.

MAS VIVER DÓI.

Não parece ser a morte a matéria única dos contos. Há também o sonho que comparece como concretude de nossos gestos. E a matéria dos contos frequenta temporalidades diversas. E assim parece apontar para esses dois elementos universalizantes da cultura: a morte e o sonho.

Este texto é parte integrante da edição de Guerra de ninguém

(contos, editora Iluminuras, 2016) e não pode ser citado sem mencionada a fonte.

Lourival Holanda é escritor, editor e professor. Suas pesquisas abrangem as áreas de cultura contemporânea, crítica literária, memória e sociedade.

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