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Romancista, contista e editor, Sidney Rocha, 50, comemora este ano quatro décadas de estrada literária, com a indicação ao  Oceanos (antigo Portugal Telecom) por Sofia - publicado originalmente pela Ateliê editorial  e relançado pela Iluminuras no ano passado -  e  o lançamento de Fernanflor, seu novo romance, que lhe custou seis anos de escrita e onde propõe uma refinada reflexão sobre as fronteiras entre o bem e o  mal, e a face  sempre sedutora da manipulação.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Vencedor em 2012 da 54ª edição do Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro,  considerado o prêmio literário mais tradicional e prestigiado do país,  no gênero contos, com O destino das metáforas, Sidney é autor ainda de Matriuska (contos, Iluminuras, 2009) e do livro de poemas Mais que o rei (1991). Em passagem rápida pela Bahia, onde lançou Fernanflor, na livraria e café Boto Cor-de-Rosa, na Barra,  o autor fala sobre aspectos da criação,  literatura contemporânea,  regionalismo e preconceito literário contra  nordestinos, a ciranda extenuante de eventos literários, que costuma envolver os escritores e os transformar em estrelas, e a crise da narrativa em um mundo em que todos são narradores.  "Não sei quanto aos outros, mas venho lutando para que um mundo inteiro de narradores não se perca no mundo tão cheio de informação e opiniões sobre tudo".

Há uma coisa que sempre me intrigou em você, antes mesmo de ler seus livros. Aquela afirmação, "eu estou pronto", que era  sua saudação de e-mail. Em que medida sentia-se pronto ou sente-se pronto hoje como autor? Afinal, há um sentir-se pronto em literatura?
Sim, o estar pronto pode significar estar de prontidão, não daquilo que se entende como resolvido, amadurecido, acabado. Na medida em que compreendo com humildade o quanto há por aprender. Com os vivos, mas com os [autores] mortos, principalmente.

Edward Said fala, em um dos textos do livro Humanismo e crítica democrática (Cia. das Letras/2007), sobre uma certa convenção de escritores na qual tentou-se de tudo, e  em vão, para desestimular as pessoas que se diziam escritores, e que eram muitas, dezenas, centenas. O que pensa que estimula essa busca por ser escritor?
Penso que o estímulo de um escritor é interior. Ele se sente impelido por vontade de fazer isso, por gostar de fazer isso. Não há nenhum outro motivo. Nada de esotérico nem de secreto nessa atividade. É menos do que uma vocação, é algo muito mais simples: gosto, volição, voracidade. Não há nenhuma necessidade de estímulo, pois trata-se de algo demoníaco, no sentido antigo do termo, ou de mania - também no sentido antigo. Uma distração ou um vício como outro qualquer.

Sim, um vício, mas o quê, provoca, ao longo dos séculos, tal vício?
Não sei quanto aos outros, mas venho lutando para que um mundo inteiro de narradores não se perca no mundo tão cheio de informação e opiniões sobre tudo. De modo muito estranho, penso que as narrativas estão desaparecendo e, nesse ponto, falo da memória das pessoas, desse mundo doente de que fala Fernanflor. Além de uma voz, busco uma respiração distinta nisso tudo. E, para isso, é preciso essa vontade de ferro, de que falei. De todo modo, mesmo mediocremente, sempre teremos reportagens sobre a existência humana, claro, coisas que cabem em romances ou acham caber. Wilde dizia que os livros excelentes já foram escritos. Concordo. E já há livros vazios o suficiente, também.

Nesse sentido ainda, como mover as peças no tabuleiro do espanto e surpreender esse leitor, perdido entre autores ou também autor? Mais que surpreender, fazer mover a máquina da literatura. Em sua opinião, essa máquina  (ao menos, em sua urdidura) prescinde de  leitores?
Não. Não há "máquina de literatura" sem leitores. Seria um completo contrassenso.

Refiro-me, ao falar sobre máquina da literatura, na presunção da existência de um leitor ideal e, claro, numa literatura feita para leitores, que nesse intento vê-se esvaziada muitas vezes.
É o que digo também: um livro sempre inventa seu próprio leitor.

Como controlar a venda dos livros? Você se sente no domínio desse processo?
O escritor tem só um compromisso, ao acordar: escrever naquele dia melhor do que o anterior. A venda de livros é coisa do mercado, dos editores, etc. No Brasil, as coisas se confundem um pouco, e o escritor vive numa armadilha o tempo inteiro: a luta pela vida, a prosa de todo dia, sobretudo se ele resolveu viver disso, do que se chama literatura. [Sobre isso, o Paulo Scott lançou livro muito bom, O ano em que vivi de literatura. Depois me diga o que achou do livro dele]. Mas daí vem isso de o escritor atuar em festivais, dar cursos, promover-se etc. É uma relação compulsória, que a gente finge controlar. Não sei dos outros, que vou pouco a eventos, mas quem vive mesmo na estrada, talvez tenha uma visão diferente da minha. Mas uma coisa um escritor deve reconhecer, se é mesmo escritor. Toda essa "scena" é o oposto da literatura. É uma anomalia. Ele deve ganhar o máximo de grana com isso pra ter  onde se refugiar, senão  pira.

Você ganhou um Jabuti em 2012,  é semifinalista do Oceanos com Sofia e é hoje um autor reconhecido. Isso me leva a dois questionamentos. O primeiro diz respeito ao "peso", relativo e absoluto, das premiações e das corridas literárias. Em que medida isso já está naturalizado?
Não muda nada. Os concursos, os prêmios são parte do mercado, da promoção, e têm para o escritor um interesse exclusivamente prático, sem nenhuma interferência no seu trabalho. Claro que quanto mais prêmios melhor, sobretudo os bem pagos, porque, teoricamente, os prêmios chamam a atenção para o livro, o editor vende mais etc. etc.

A outra diz respeito a como um autor nascido no Nordeste (Ceará-Pernambuco) é recebido nesse mercado, predominantemente sulista e masculino (em temática e em número de autores). E em como sua obra é recebida nesse meio.
Em minha opinião, não há literatura regionalista nem literatura universal. Há literatura. Ponto. Os rótulos são criados pelos historiadores e críticos profissionais da literatura, os professores universitários, os jornalistas, publicitários etc. Nem entro sequer em propalar aquela afirmação ingênua tantas vezes repetida de cantar a aldeia para cantar o mundo. O tema e a geografia somente importam pelo conhecimento que se tem deles, e quanto mais conhecimento um narrador tem sobre um assunto, mais fácil fica para o seu trabalho, mas não escrevo um conto ou um romance pensando que há algo de especial em ter nascido em uma cidade determinada do Nordeste. Outra vez, penso que  esse não é um problema literário, mas do modo como o Brasil vem construindo ao longo do tempo suas relações internas, e os jogos de poder.

Mas é inegável  o isolamento a quem são submetidos os autores de regiões distantes dos grandes centros editoriais. A Bahia é um deles. Isso foi algo que experimentou pessoalmente?
De algum modo, vivemos um modelo não muito diferente do começo do século passado, onde o Rio e São Paulo terminavam por dominar o cenário. É assim ainda hoje. Claro, isso sempre teve e sempre haverá de ter com uma coisa chamada economia. Ora, mas São Paulo, que gosta de conduzir, e também conduzida por centros maiores e por aí vai. Mas não gosto da ideia ou imagem do escritor enfiado nalgum grotão do Brasil, esperando que o salvem. Não gosto nem nunca gostei do papel da vítima. Pelo contrário. Acredito na literatura, antes demais nada. Se um texto é bom, algum dia ele aparece, e não importará de onde veio.  Não importa se João "existiu de se pegar", como dizia Drummond sobre Rosas, mas podemos tocar Grande Sertão: Veredas. Pouco importa uma triste alma escondida como Shakespeare (que talvez sequer tenha existido em qualquer Avon), importa é Hamlet. Temos problemas de verdade pra vencer, antes de mais nada: educação. Alcançar uma identidade como escritores é fortalecer sua identidade como nação, e isso se faz se misturando mais, e não aceitando segregações. Por isso, não me deixo vitimar por barreiras. Não me deixo vencer pelos gêneros, pelas regiões, por nada. Minha pergunta é sempre: é um belo texto, é um bom romance? Não importa de onde vem. Mas para onde o texto pode me levar. Claro, se você vê um escritor do porte de Lima Trindade e se pergunta porque não estamos lendo seu romance nas escolas, você fica puto, claro. Mas o próprio Lima, tenho certeza, sabe que a literatura é outra coisa. Chega de literatura de planilhas. Literatura de resultados. Queremos agora os resultados dessa literatura. E isso passa menos por números e mais por educação.

Em Fernanflor, seu novo livro, você trabalha o bem e o mal como aspectos complementares. Quando  Jeroni virou ideia e personagem?
Jeroni foi, e aqui serei repetitivo, desde o início, ideia-personagem. Não houve um big-bang de Fernanflor, ele já estava, se podemos dizer assim, naquela ilha da infância, onde o inferno e o paraíso se confundem, onde a realidade e a fantasia se confundem, onde o mal e o bem se confundem. Não é este o mundo em que vivemos?

O romance consumiu seis anos, o período mais longo, no entanto, tem sido bem incomum, num mercado em que vemos livros serem editados a toque de caixa quase. Há desleixo na tessitura do gênero, dizem alguns. Qual sua opinião?
Todo romance que se escreve agora é contemporâneo. No sentido literal, substantivo. Toda história tem os limites do seu tempo. Consumir mais tempo ou menos tempo na composição da história não é, em si, indicador de qualidade. Há verdadeiras obras-primas da literatura que foram escritas em muito pouco tempo, e outros livros que consumiram a vida de um autor e o resultado não foi talvez tão bom quanto ele pensava, sem falar nos casos daqueles que nunca foram terminados.

por KÁTIA BORGES

"Um livro

sempre inventa seu próprio leitor"

Enfim, um artista luminoso, ou como dizia Ariano Suassuna, um 'escritor

de raça.' Imensamente criador e, a seu modo, revolucionário.

Cristiano Ramos é jornalista, escritor e crítico literário, doutorando em Teoria e História Literária (Unicamp). É autor do livro de poesias Muito antes da meia-noite (Editora Confraria do Vento, 2015)”.

Leia esta resenha também onde está publicada originalmente: no Suplemento Pernambuco #131

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