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Em entrevista, Sidney Rocha fala

de seu novo romance, questiona muletas metodológicas da crítica e coloca em suspeição o peso dos concursos e prêmios literários.

“O livro trata disto, acima de tudo: do artista que aprende, se torna mestre, adorado, e no seu percurso, mesmo no ponto mais alto, vê e percebe que a grande e rápida e possível queda ali está, sempre, encostada à nuca, ao traseiro, aos calcanhares”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Assim Gonçalo M. Tavares apresenta Fernanflor (Iluminuras, 2015), romance de Sidney Rocha, e primeiro volume da trilogia “Geronimo”. Apesar de repetir que levou uma vida inteira “escrevendo” este livro, foi lá por 2001 que chegou Fernanflor. Era “notívago e um criminoso vulgar; mas, depois, ‘ele’ decidiu ser de todas as horas, e muito mais malicioso e sutil”, relembra o escritor.

Sidney Rocha conquistou espaço e reconhecimento da crítica com os livros de contos Matriuska (2009) e O destino das metáforas (2011, vencedor do prêmio Jabuti). Nesta entrevista, ele trata de Fernanflor, que, para Lourenço Mutarelli, “torna Sidney apenas um borrão, enquanto ele ganha carne”. O entrevistado também diz que tipo de romance lhe interessa, questiona as muletas metodológicas de alguns críticos e resenhistas, coloca em suspeição o peso dos concursos e prêmios literários, das pressões do mercado editorial, das biografias dos autores etc. Geralmente elogiado pelo seu apuro técnico, ele ressalva: “Não me interessa o romance que entende a linguagem como um fim em si mesmo; por melhor e bem feito que seja, um romance que descuidar do humano não serve para muita coisa”.

CULT – Recentemente, você começou a ministrar cursos de escrita criativa. O que é possível ensinar ou provocar em oportunidades assim? O que os alunos não devem esperar de Sidney Rocha?

Sidney Rocha– É um curso sobre minha experiência de escritor, mas especialmente de leitor, porque todo escritor é, antes de tudo, um leitor. Portanto, lá não encontrarão fórmulas. Não pratico pole dance literário, nem capoeira literária. Cada um está por conta própria, sem poder se agarrar a nada. Ensino a ler. Se a pessoa ao final entender A metamorfose para além da experiência entomológica, já é um avanço, e segue em frente. Agarro ninguém pela mão. Todo mundo lá é meio José Régio. E sempre repito: “Vamos falar de algo realmente assustador: os livros terríveis”!

CULT – E para o leitor Sidney Rocha (que não apartaremos ingenuamente do autor), o que é, e o que pode um romance nos dias atuais?

Sidney – Um romance pode ser tudo o que queira fazer dele um romancista. Penso que a coisa a aprender quando alguém decide ser ou se sente um romancista é essa extraordinária liberdade que o romance permite, e nenhum outro gênero narrativo, da mesma maneira. Gosto, portanto, de ler os romances que exploram novas possibilidades, e não apenas as que já foram tentadas. Aliás, o melhor mesmo é percorrer os territórios desconhecidos e insuspeitados.

CULT – Além dessa exploração das possibilidades, a sua declarada busca tem sido por uma literatura que surpreenda, cause espanto, tire o leitor da zona de conforto. Que tipo de romance lhe provoca tais sentimentos?

Sidney – Aquele que consegue promover uma dificílima reunião, que consiste na elaboração da linguagem, tentando traduzir a paixão humana. Não importa qual o gênero dentro desse gênero – mas riqueza de linguagem, manejo cuidadoso da memória, e da imaginação.

CULT – A leitura de sua prosa sugere forte relação com a poesia. Qual a convivência do escritor Sidney Rocha com as demandas e o discurso poéticos?

Sidney – Uma relação dupla. Que não deve ser confundida com uma relação dúbia. A primeira é a da poesia em si, de quando escrevi ou de quando escrevo versos. A segunda é a do romance em si, que, diferentemente do que muitos pensam, não deve ser uma imitação do poético, é de outra natureza. De outro ritmo. De outra dança.

CULT – Como você ressalta a importância da linguagem – além de ser reconhecido como autor de técnica apurada – não é raro que deixem em segundo plano sua preocupação com o lugar que as personagens e os enredos têm ocupado na literatura atual…

Sidney – Não tenho como controlar nada na recepção dos meus livros. Um romance não vem com um mapa ou com pontos onde se fixar. Mas, de tal maneira são importantes os personagens para mim, que é justamente um personagem quem dá título ao meu romance. Consiste em entender algo essencial: a linguagem “é” o personagem, e não o contrário. Não me interessa o romance que entende a linguagem como um fim em si mesmo. Por melhor e bem feito que seja, um romance que descuidar do humano não serve para muita coisa.

CULT – Em eventos, é comum vê-lo reagir impaciente às indagações sobre seu lugar entre os escritores contemporâneos brasileiros…

Sidney – Um lugar? Acho que ninguém atualmente tem “um lugar” na literatura contemporânea brasileira — embora, sinceramente, nunca tenha parado para pensar nisso. Apenas escrevo livros, deixo as classificações aos críticos e teóricos.

CULT – Por qual razão você se irrita tanto quando entrevistadores, mediadores e resenhistas tentam apresentá-lo ou interpretá-lo através de comparações com outros escritores vivos?

Sidney – Não, não me irrito. Mas apenas sinto ligeiro incômodo com as inexatidões. É fácil e frequente que as comparações sejam superficiais e meras miragens. São válidas como tentativas de situar. Mas, à medida que um leitor se aprofunda mais no seu autor, percebe que ele, se válido, é singular.

Irritante mesmo é comparar escritores contemporâneos com grandes clássicos universais! Coisa que, apesar de tudo, continua a acontecer no Brasil. Os clássicos estão vivos. Nós mal resolvemos sequer o nosso medo da morte em que estamos todos imersos. Não sofro de febre de pertencimentos. Além do mais, alguém pode fazer as comparações que quiser, e gerar também as confusões que queira. A questão é que a comparação, na maioria das vezes, é uma muleta metodológica. Ela impede de a crítica avançar.

CULT – Quando a comparação deixa de ser válida e se torna uma muleta que compromete o exercício crítico?

Sidney – O livro termina por inventar também o seu crítico. É a obra que determina cada método, creio – e não o contrário. Então provavelmente o que serve pra explicar o autor A não servirá para criticar o autor Z. Ao crítico, deve interessar a obra ela-mesma, e seu trabalho deve ser uma criação a partir daí, uma invenção que se dá a partir do texto a ser analisado. A crítica é tanto invenção, subjetividade e imaginação como a prosa que escrevo. Só desejo o mínimo de imaginação no julgamento da minha obra. E nada mais brochante e anti-imaginativo que a comparação, sobretudo quando ela soa pedagogizante. Sei que, até para apresentarem um saponáceo, alguns acham necessário buscar paralelos com outros sabões, com os ácidos graxos… Mas, no geral, toda comparação é preguiçosa.

CULT – Embora pauta frequente, em 2015 ganhou fôlego a discussão sobre concursos e prêmios literários. O que um dos vencedores do Jabuti pensa – se é que lhe interessa pensar – sobre o assunto?

Sidney – Espero ganhar o próximo – e se for bem pago, melhor ainda. É o melhor dos prêmios: o que ajuda o escritor a pagar as contas! Porque o escrever melhor não depende de prêmios. Nenhum escritor que se preze vai ficar ansioso por causa disso, ganhando-os ou não.

CULT – Escritores frequentemente reclamam da lógica editorial. Não raro, acusam pressões e afirmam que dinâmica do mercado cerceia a liberdade criativa. No seu caso, algo o constrange – para além das páginas e de suas demandas literárias?

Sidney – Isso me faz lembrar de um trecho em Fernanflor: “Estamos no meio de um mundo de maníacos gritando por liberdade o tempo todo” [risos], para depois algum personagem perguntar: “E existe afinal a liberdade?”.

Como eu disse, estou em paz. Não conheço tantos spinozas. O mercado é problema para editores e livreiros.

CULT – Você se diz desinteressado em teorias e, sobretudo, em teorizar a própria obra; porém, com Fernanflor, escreveu texto que é sim resenha sobre; e, em entrevistas, não se furta a defini-lo, explicá-lo, interpretá-lo.

Sidney – Não há contradição alguma. As minhas resenhas também são obras de ficção. As minhas crônicas são contos. Os meus testemunhos são inventados. Não tenho nem interesse nem capacidade de construir, reconstruir ou desconstruir explicações e teorias.

CULT – Autores costumam romantizar suas vidas, aproximar-se da imagem do escritor como figura trágica, repleta de situações-limite. Isso não acontece com Sidney Rocha, que amigos atestam ter convivido intimamente com os abismos. É escolha refletida ou silêncio “natural”?

Sidney – A minha vida não tem importância alguma. A de gente como Fernanflor, sim! Sou do tipo que julgador nenhum deve se confiar piamente para explicar meu texto. Não sirvo como fonte. Nem meus contos ou romances servem para explicar quem eu sou. Não me devo nada.  E, se devo algo a alguém, digam-me como pagar com dinheiro ou trabalhos forçados, não com minha literatura!

Dia desses, li texto num jornal do Ceará. Algo assim: “Em Fernanflor, o zelo de Sidney Rocha em abolir cores e sotaques da sua região torna-se quase obsessivo, mas vez por outra ele se trai e deixa escapar as origens.” Imediatamente me lembrei de Natalício, um personagem de Raimundo Carrero (do livro Sinfonia para vagabundos), que diz: “Não pratico telepatia”. Ora, não há nada de obsessivo em meu trabalho, senão a busca pela linguagem e pela narrativa. Portanto, nada mais sem cabimento, no estágio atual do meu trabalho – sabe bem meu leitor, sobretudo o leitor de Fernanflor. Todavia, há quem pratique telepatias e saiba exatamente onde um escritor se trai ou se concilie.

CULT – E onde o escritor Sidney Rocha se concilia?

Sidney – Sou um caso perdido. Não me concilio. Minha literatura não é confessionário. Minha vida serve para a literatura no que haja de estética nisso. As confissões são vulgares. Não me confesso. Não vejo nenhuma importância da personalidade ou biografia de um autor no texto literário. Escritores se saem melhor se são justo o contrário do retrato.  Além disso, Proust já venceu essas discussões para nós. Detesto discursos de superação. Minha obra não está a meu serviço, mas a serviço do leitor, e nisso espero que Lichtenberg esteja certo. E, se há um homem natural, como diz o texto bíblico, e um silêncio ‘natural’, como você menciona, deve haver um homem espiritual e um silêncio espiritual também. É por aí.

CULT – Você já afirmou que sempre sai pessoa diferente ao terminar de escrever um livro. É possível arriscar o que mudou em Sidney Rocha após essa jornada com Fernanflor?

Sidney – Retorno a Proust: “O homem que faz versos e que conversa num salão não é a mesma pessoa”.  Todo livro é fruto sempre de um outro que se manifesta em nós. Se fosse diferente, ou simplesmente sobre como reajo, como lido com as paixões e os vícios, seria fácil. Mas se trata de algo mais forte, que é a busca da beleza. E, para isso, é preciso de um plano de voo que só pode ser controlado até determina altitude – depois é deixar agir a gravidade, mesmo que o destino seja se chocar com os navios lá embaixo. Gosto de falar a mim mesmo nos termos que Oscar Wilde usou para um conhecido: “Desculpe-me por não reconhecê-lo: é que eu mudei muito”.

Quando isso corre, estou pronto pra escrever outra vez. E já estou.

por cristiano ramos

nem

conciliador,

nem confessional

Enfim, um artista luminoso, ou como dizia Ariano Suassuna, um 'escritor

de raça.' Imensamente criador e, a seu modo, revolucionário.

Cristiano Ramos é jornalista, escritor e crítico literário, doutorando em Teoria e História Literária (Unicamp). É autor do livro de poesias Muito antes da meia-noite (Editora Confraria do Vento, 2015)”.

Leia esta resenha também onde está publicada originalmente: no Suplemento Pernambuco #131

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