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por cristhiano aguiar

mas os mortos

não sabem

coisa alguma

aí está uma terrível lição que atravessa Guerra de ninguém de uma orelha a outra, sabedoria esta que Sidney nos transmite com a verve tanto de um profeta do Velho Testamento, quanto com a ironia de um trovador.

Cristhiano Aguiar é escritor, crítico literário e professor. É doutor em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e mestre em Teoria da Literatura pela UFPE. Participou da revista Granta – Melhores Jovens Escritores Brasileiros e atuou como pesquisador-visitante da University of California, Berkeley. Editou as revistas experimentais Crispim e Eita!. Tem textos publicados na Inglaterra, Estados Unidos e Argentina. Atualmente edita o site Vacatussa.

Leia esta resenha também onde está publicada originalmente: em  http://www.vacatussa.com/guerra-de-ninguem-sidney-rocha/

NO FINAL DO ANO PASSADO, EU TINHA falado

sobre o tempo ao comentar o ótimo romance de José Luiz Passos, 

O marechal de costas; volto a insistir neste fio da meada, agora para iniciar nossa conversa sobre o também excelente Guerra de ninguém, novo livro do cearense Sidney Rocha, publicado em 2016 pela Iluminuras. Podemos estabelecer um possível diálogo entre as duas obras e o ponto principal de articulação pode ser o tratamento dado ao tempo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Em ambas, temos uma justaposição de diferentes temporalidades espelhando a si mesmas. Por conseguinte, o tempo nos conduz a uma unidade temática comum, a de uma poética da violência. Se em Passos a narração da violência se pauta por um recorte que privilegia a vida política, no caso de Rocha a violência na política é apenas um dos elementos de um amplo catálogo de “guerras”.

Não por acaso, a capa de Guerra de ninguém, uma das melhores, aliás, publicadas em 2016, nos mostra uma tenebrosa imagem, a de um cavalo, provavelmente em processo de decomposição, cercado por miseráveis crianças que conversam e brincam. Ora, Guerra de ninguém é uma descida aos infernos sem a perspectiva de um Purgatório, um Paraíso ou uma Beatriz. É a trajetória de um projétil aquilo que se desenha ao longo do livro, conectando as dezenas de histórias e personagens criadas pelo escritor cearense. Vidas, países, tempos e culturas diferentes são compilados ao longo das 103 páginas do livro. Os crimes passionais de "O rapto de Felícia" e "A beautiful negro lady"; o martírio, em "A alva"; as trincheiras alemãs e cearenses em, respectivamente, "Os dois poetas" e "Joaseiro"; as dores das mães representadas em "De volta para casa"; o ocaso político latino-americano em "Clara e Carmelita"; a guerra marcando gerações de libaneses em "Os Nehemy" – aqui, somente alguns exemplos do escopo, da variedade de histórias, encontradas em Guerra de ninguém. E a leitura corre bem, com a usual habilidade de Sidney em construir, em textos concisos, imagens marcantes e um bocado de achados poéticos, como este, o parágrafo de abertura do conto "A lenda", que ficcionaliza as possíveis vidas do escritor Ambroise Bierce: “Não adianta. Se a moeda der cara, em alguma hora a bala vai rachar sua cabeça. Quando Bierce escreveu estas linhas, fechou a cadernetinha, e ouviu o assovio de um pássaro singrar o campo de batalha para depois o silêncio o atingir com uma soqueira no centro do crânio”. A bala corre, espalhando ondas concêntricas – cada uma é um conto.

Por outro lado, Rocha evita um risco frequente destas empreitadas panorâmicas. Às vezes, “universalizar” um conceito em histórias que transcorrem ao longo do tempo e do espaço leva uma obra ficcional a um gesto diluidor e raso. Todas as histórias e conflitos vão significando pouco mais do que uma brincadeira conceitual, um gesto empolgado com a própria (e suposta) sagacidade. Isto não ocorre em Guerra de ninguém, porque cada “guerra” é narrada em sua particularidade, ao mesmo tempo em que todas as guerras são articuladas entre si, compondo o mosaico da destruição. Ajuda, de igual modo, como destaquei no parágrafo anterior, o fato de Sidney Rocha ser um escritor de muita criatividade, às vezes resolvendo na trincheira de um parágrafo toda uma gama de problemas narrativos intrincados.

Outra armadilha da qual Sidney Rocha escapa no seu livro novo é a tentação de politizar a violência. Em sua intervenção como escritor, como intelectual público, seja em eventos, textos jornalísticos ou nas redes sociais, Sidney se posiciona com toda clareza como alguém que defende a bandeira da Esquerda. Não encontro, no entanto, a mitificação da violência como transformação do mundo, tópico sempre delicado para o pensamento de esquerda, nem o ajuste de contas infantilizado dos nossos traumas recentes. Um ótimo exemplo é o conto "Os três exércitos", um dos melhores do livro e que muitos, com dedo em riste de acusação, classificariam pejorativamente como “ambíguo”. Nele, três fantasmas, um deles o de Ernesto Che Guevara, se encontram em uma clareira e compartilham entre si o momento no qual as balas os conduziram à morte. Os fantasmas sangram na noite, enquanto conversam:

“- Maldita bala. Malditos traidores.
– Viva o Exército Libertador do Sul!
– Ora, nada disso faz muito sentido agora.”

Cinismo? Sidney jogou a toalha e desistiu? Não necessariamente: "Os três exércitos" se abre tanto à política, quanto ao indizível da morte, misturando à condição política a própria condição frágil do homem diante da inescapável mortalidade, sobre a qual o autor do  Eclesiastes, por exemplo, afirma: “Por que os vivos sabem que hão morrer, mas os mortos não sabem coisa nenhuma, nem tampouco terão eles recompensa, porque a sua memória jaz no esquecimento. Amor, ódio e inveja para eles já pereceram”. De todos os livros de Rocha, aliás, é neste que encontraremos de modo mais explícito a presença da literatura fantástica. Guerra de ninguém lança mão do fantástico por diferentes motivos. Um deles é o fato de que o imaginário abra as porteiras da poesia na várzea da prosa. Outro motivo são as zonas de sombra no tocante à discussão política: o fantástico não-diz e isto é bom. Por fim, o fantástico, a sugestão do fantástico, é a forma muitas vezes encontrada nos contos para reiterar a continuidade do trauma social.

No conto "O bonito e o feio", uma bem arquitetada narrativa sobre o assassinato de Abraham Lincoln, lemos: “Lá estão os homens voltando da guerra, mulheres caminhando com orgulho ao lado de heróis famintos, a velha ideia de salvar tudo, mesmo que para isso se destrua tudo, vencia”. A violência como uma estratégia eficiente no agir social, sem dúvida; mas a violência como um reverso da medalha, uma criatura que, sem que sequer percebamos, pode se virar contra nós mesmos: aí está uma terrível lição que atravessa Guerra de ninguém de uma orelha a outra, sabedoria esta que Sidney nos transmite com a verve tanto de um profeta do Velho Testamento, quanto com a ironia de um trovador.

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